
No Museu do Mar Rei D. Carlos, Gary Damian Thomas apresenta-nos Cor. Luz. Água. Cascais., exposição que celebra a beleza natural e o charme desta vila costeira.
O que o trouxe a Cascais?
De forma resumida, a minha irmã e o marido mudaram-se para cá cerca de um ano e meio antes de mim. Descobriram Cascais e eu vim visitá-los em 2021. Apaixonei-me imediatamente e decidi que devia mudar-me para cá também.
E como é para si viver em Cascais?
Cascais é um sítio lindo, muito parecido com o sul da Califórnia de onde sou, desde o clima, à topografia. Mas é um sítio melhor e mais seguro, mais charmoso, as pessoas são muito gentis, a comida é incrível, os vinhos são ótimos. Para mim, viver em Cascais é como um sonho tornado realidade. Viver num sítio de onde não quero sair, não consigo pensar numa razão que me faça querer sair de Cascais.
Uma razão para vir, muitas para ficar.
Exato, é isso mesmo. Não consigo encontrar uma razão para sair.
Passa cá grande parte do ano?
Sim, estou cá quase todo o ano.
E qual a perceção dos seus amigos e família? Os que não vivem cá.
Os que já vieram visitar também ficam encantados, como eu, com a beleza e a cultura deste local. Os que ainda não vieram, ficam cheios de inveja e perguntam-me "vá lá, qual é o senão de Cascais?" e eu não consigo dizer nenhum, honestamente.
A sua obra, o que surgiu primeiro, a pintura ou os storyboards?
A pintura surgiu primeiro. No final dos anos oitenta, comecei a interessar-me em trabalhar na área das artes visuais. Tirei um breve curso de aguarela numa escola para adultos perto de minha casa, durante cerca de sete semanas e aprendi tudo o que precisava de saber sobre a técnica de aguarela. Na altura fiz algumas aguarelas, sobretudo com motivos florais. Nunca fiz paisagens, como fiz agora para esta exposição. Depois comecei a pintar a óleo e decidi que essa era a técnica que queria desenvolver, até que surgiu a minha carreira como um artista de storyboards em Hollywood e tive de deixar de parte essas aspirações. Por isso, foi só quando cheguei a Cascais que voltei à aguarela.
Storyboards e pintura, o que têm as duas artes em comum?
Há muitos elementos dos storyboards que utilizo na pintura. A composição de uma pintura e a forma como pinto, que procura o realismo. Desenho frequentemente com um pincel e desenvolvi essa capacidade ao longo dos anos, porque desenhar ajudou-me a ser preciso e hábil com o pincel.
São ambos trabalhos solitários.
Sim, é verdade. Passo muito tempo no meu estúdio de trabalho sozinho. É um trabalho solitário. Mas a parte boa é que, enquanto estou a trabalhar, a minha mente consegue viajar para outras áreas. Posso ouvir a música que me apetece e isso conduziu à minha paixão pela música clássica. Ouço muita música clássica e jazz, enquanto trabalho.
Quais foram os trabalhos que mais se destacam ao longo da sua carreira em Hollywood?
Já trabalhei em 146 filmes e é difícil escolher. Trabalhei em grandes filmes como L.A. Confidential, Scream ou Black Panther e no filme vencedor do Óscar em 2009, Hurtlocker, produzindo os storyboards para a realizadora, Kathryn Bigelow. Um dos desenhos que fiz foi escolhido para o cartaz do filme, o momento em que ele está a segurar as bombas, rodeado por elas. Essa cena foi baseada num desenho meu.
Qual é a função dos storyboards? É pensar de que forma serão filmadas as cenas?
Tecnicamente, um artista de storyboards faz desenhos que são colocados num painel (board) para que a sequência de desenhos permita contar uma história (story – história: board – painel).
Muitas pessoas pensam que são os realizadores a terem todas as ideias e que nós desenhamos. Na realidade, eu tenho a oportunidade de desenvolver várias ideias para o conteúdo de cada cena.
A partir do guião?
Sim, às vezes tenho o guião. Outras vezes, contam-me apenas as linhas gerais da história e desafiam-me a criar uma sequência de imagens. Ou seja, tenho a liberdade de criar o que quiser, desde acrobacias a diálogos, a figurinos, a efeitos visuais e especiais, até pensar na posição da câmara e dos atores e dos diferentes elementos durante a cena. Na realidade, numa fase inicial, posso pensar em qualquer coisa. Mostro depois ao realizador e decidimos o que é concretizável e o que gostam mais e segue-se depois uma aprovação pela produção, que decide o que pode ser ou não financiado.
Isso quer dizer que faz mais do que um storyboard por filme?
Posso chegar a fazer cerca de três mil desenhos para storyboards.
E vai elaborando diferentes desenhos, depois da discussão com a realização e a produção?
O filme é dividido em cenas ou sequências e eu posso desenvolver várias sequências. Normalmente, há mais do que um artista de storyboard a trabalhar num filme – já participei num que tinha seis diferentes artistas – o The A Team (Soldados da Fortuna). Quanto maior a produção, maior o número de artistas de storyboard. Se fizesse todo o filme, todas as cenas e sequências, poderíamos estar a falar de 3500 desenhos individuais.
Ainda está a trabalhar, a partir de Cascais?
Se me contratarem, sim, claro. Mas infelizmente torna-se claro que a indústria do cinema está em rutura. Não só eu, mas muitos milhares de profissionais da indústria, baseados em Los Angeles e noutros locais dos EUA, estão sem trabalho. Existem tão poucas produções em curso que não existem muitas oportunidades de trabalho.
O vosso trabalho está a ser substituído pela Inteligência Artificial?
É uma boa questão. A Inteligência Artificial, para já, não consegue fazer uma sequência de imagens, como um storyboard. Até poderá fazer uma sequência, mas fica comprometida a continuidade e o estilo artístico do desenho. Não fica igual ao que poderia ser criado por um artista. E a inteligência artificial não compreende o que está a produzir.... É difícil explicar.
Não é coerente, é isso?
Sim, não é muito coerente. É como se tivéssemos um empreiteiro que faz cozinhas e faz cozinhas fantásticas. Mas não conseguimos falar com ele e dizer exatamente o que queremos. Porque se pedimos para mover o frigorífico para outro lugar, ele tem de fazer sempre uma cozinha totalmente nova e temos de lidar com o facto de nunca termos a cozinha que queremos.
Atualmente, a Inteligência Artificial é muito boa a produzir imagens, mas ainda não é muito boa a produzir sequências. E eu utilizo a inteligência artificial como ferramenta. Por exemplo, posso estar a ter de desenhar um leão, e peço para que ela me apresente diferentes perspetivas de um leão. É mais simples e rápido do que antes, em que tínhamos de ir procurar diferentes fotografias de leões na internet. Quando comecei, há muito tempo, tinha até um livro de imagens de referência para poder consultar.
Então, agora, não está a trabalhar em nenhuma produção?
Não e pretendo reformar-me no final deste ano.
Olhando de novo para as pinturas que apresenta nesta exposição, que histórias nos contam?
Eu sou um apaixonado pela Natureza. Tendo a afastar-me do que são objetos produzidos por humanos. Pintar coisas naturais é mais aceitável, é mais fácil e consigo que pareça real, mas já a arquitetura é mais desafiante, porque basta um pequeno erro e fica logo mal.
Sinto-me inspirado pela cor, pela luz e pela água.
Sobretudo pela cor e pela luz, como os impressionistas dos finais do século XIX. Sinto emoções através da cor e da luz, e por isso estas pinturas são inspiradoras, não só porque estou orgulhoso por as ter conseguido criar, mas também porque, ao pintá-las, pude sentir várias emoções ao longo do processo.
Costuma pintar diretamente no local ou desenha no local, e termina depois em estúdio?
Quando comecei esta série de aguarelas, em 2022, tentei pintá-las diretamente no local, porque tinha feito algumas pinturas a óleo desta forma. No entanto, a aguarela é mais difícil de trabalhar no local, sobretudo no caso de pinturas de grandes dimensões. O que percebi é que tinha de tirar fotografias e depois regressar ao estúdio para as pintar.
Há, contudo, uma aguarela aqui em exposição que pintei diretamente no local – a da Praia da Apúlia, que demorou cerca de uma hora. É o exemplo do tipo de complexidade que se consegue atingir ao pintar no local, se pretendermos uma representação mais elaborada demoramos muitas mais horas a pintar.
E de que forma é que estas pinturas definem Cascais?
Acho que são uma carta de amor a Cascais, um sítio lindo, não há qualquer dúvida. Por exemplo, esta pintura da arriba (Rocky Cliffs) ... Cada vez que passo por este local, paro e fico a ver, e surpreende-me sempre. As cores são diferentes, a luz é diferente e é sempre uma imagem tão icónica que vou sempre parar ali para apreciar a paisagem. Isto aplica-se a quase todas as paisagens aqui pintadas. Todos estes locais são permanentemente belos, independentemente da meteorologia, da luz...
Podemos ver esse exercício com o conjunto de pinturas do mesmo local pintado a diferentes horas do dia.
Sim, é verdade. Pintei-o ao nascer do sol, a meio do dia e ao pôr do sol. Tenho a tendência de ignorar o que será o tema principal da pintura e prefiro focar-me em algo que as pessoas podem nem reparar. Por exemplo, nesta pintura das rochas à beira-mar – que é um tema que eu gosto muito de pintar – as pessoas podem focar-se mais no horizonte, onde estão os edifícios, mas para mim a emoção está na aleatoriedade e na beleza das rochas e dos efeitos da água.
É percetível nas várias representações que faz da praia de Santa Marta, em que se foca nas rochas e nos diferentes efeitos de luz da água.
Sim. Por exemplo, olhando para a pintura do Farol e da praia de Santa Marta – habitualmente, esta paisagem é registada em dias luminosos e soalheiros, com maré alta, mas para mim é mais bonita a maré vazia e este céu, que não é bem nebulado, mas melancólico.
Na realidade, as pessoas têm reagido mais às pinturas onde o céu aparece mais nebulado – como esta da baía de Cascais após a chuva.
E nessa pintura, o tema principal é o céu, e não a baía.
Continua ainda a trabalhar em aguarela?
Essa é a característica estranha que tenho, e que é mais difícil de compreender pelas outras pessoas. Sou arrebatado por episódios criativos a que me dedico totalmente e onde atinjo um nível de competência, que leva a sentir-me cansado e aborrecido, e nessa altura procuro algo mais desafiante e divertido. Por isso, depois da primeira série, em que durante um ano realizei cerca 72 aguarelas, parei e não voltei a pintar durante um ano. Quando começámos a preparar esta exposição, pintei sete novas aguarelas, mas não voltei a pintar mais nenhuma...
Sou compulsivamente compelido a criar, sem intenção de que as coisas que crio sejam o que faço ou o que sou e só agora estou a ficar confortável com a ideia de que não quero ser apenas uma coisa.
Costumo descrevê-lo como um homem do Renascimento, na perspetiva em que gosta de fazer muitas coisas diferentes e fá-las muito bem e isso é um talento especial e raro.
Sim, é um talento raro, mas demorou-me toda a minha vida a desenvolvê-lo. Durante muito tempo estive muito disperso e não conseguia produzir muito.
Utiliza a técnica de aguarela na produção de storyboards?
Não, são técnicas diferentes, assim como a pintura a óleo. São experiências totalmente diferentes.
Mas tendo apenas trabalhado um ano em aguarela, conseguiu desenvolver uma notável habilidade artística. Quanto tempo demora a pintar?
As maiores pinturas, dependendo da complexidade levam entre três a quatro dias, trabalhando cinco a seis horas por dia. As médias levam cerca de um dia e as pequenas cerca de duas a três horas.
Demoro cerca de uma hora a pintar uma área do tamanho do meu pulso, sobretudo se for uma representação mais complexa.
E desenha primeiro, antes de pintar?
Sim, e utilizo uma aplicação que, através da fotografia original, ajuda-me a marcar as linhas no papel e permite-me ampliar a imagem ao pormenor, para melhor a reproduzir. Podia desenhar só à mão, mas não me faz sentido.
Então pinta sempre a partir de uma imagem, ou cria algumas das paisagens que vemos?
Em cerca de 10 por cento dos casos, inventei alguma coisa porque senti a necessidade de o fazer, porque não havia nada naquele sítio. E noutras situações, usei a inteligência artificial para criar, por exemplo, um céu diferente do que aquele que estava na fotografia.
A pintura com maior intervenção da inteligência artificial foi a do barco abandonado, que foi criado integralmente por inteligência artificial. Não acho que isso seja fazer batota, porque em última análise, o objetivo é fazer uma boa pintura.
Por exemplo, na paisagem da Praia da Ursa utilizei três fotografias diferentes e consigo mostrar onde começa e acaba cada uma, porque "cosi" as três fotografias diferentes.
Se for ao local, consigo encontrar esta paisagem?
Não exatamente, porque as coisas que estão representadas são do mesmo local, mas não estão juntas. Todas as pedras que vemos estão em sítios diferentes, mas nenhuma das fotografias que tirei era exatamente como queria, por isso decidi fazer assim.
E o mesmo acontece com a pintura da baía de Cascais (Calm Waters).
A água e a paisagem foram pintadas a partir de uma fotografia, mas o céu foi criado em inteligência artificial. Descrevi exatamente o céu que queria, com nuvens cumulonimbus, que se formam quando a humidade tem de subir muito, até conseguir atingir o ponto de orvalho. São nuvens que refletem um dia quente. Mas tive de ver cerca de 25 a 30 fotografias até encontrar algo que gostasse. E depois reproduzi ao pormenor.
Esta exposição celebra a sua incursão pela aguarela. Qual é a sua nova aventura artística?
O ano passado, comecei a trabalhar em composição musical, criando sonatas para piano, como a que se pode ouvir no vídeo que passa na exposição. Também tenho trabalhado com a inteligência artificial na produção de vídeos com um amigo. É uma ferramenta de trabalho. Estamos no precipício de um novo mundo. A última vez na história da Humanidade em que houve algo tão significativo foi quando surgiu a internet. Basta pensar na nossa vida antes e depois da internet. A mesma mudança está prestes a acontecer, mas de uma forma ainda mais significativa.
Cor. Luz. Água. Cascais., de Gary Damian Thomas, até 31 de agosto de 2025
| Imagens da exposição AQUI
Museu do Mar Rei D. Carlos
Rua Júlio Pereira de Mello
2750-319 Cascais
Horário | De terça a domingo | Das 10h às 13h e das 14h às 18h
CMC | TC